Trabalhadores resgatados em duas fazendas de arroz no Rio Grande do Sul em condições análogas à escravidão costumavam desmaiar de fome e sede, afirmou à reportagem o auditor fiscal do trabalho Vítor Ferreira. Sem condições de terminar a jornada, eles perdiam parte do salário.
É evidente que os desmaios aconteciam e que não era dado nenhum cuidado pelo explorador da mão de obra. Se ele [o trabalhador] não cumprir a jornada, seja por qualquer motivo, não recebe [a diária].” – disse Vítor Ferreira, auditor do trabalho.
A Polícia Federal, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e o MPT (Ministério Público do Trabalho) iniciaram uma operação na última sexta-feira (11) em duas fazendas a cerca de 50 quilômetros da área urbana de Uruguaiana (RS).
Até o momento, foram resgatados 56 trabalhadores em condições degradantes, incluindo dez adolescentes. A operação segue em andamento em busca de outras pessoas que trabalharam no local.
Os investigadores querem saber se os donos da fazenda —- as estâncias Santa Adelaide e São Joaquim —- ou a empresa que comprou a produção de arroz eram os verdadeiros empregadores dos lavradores rurais.
Um “gato” —agenciador de trabalhadores— foi preso. Em depoimento à Polícia Federal, ele ficou calado. Seu nome não foi divulgado, assim como o dos donos das fazendas e da empresa.
O auditor Vítor Ferreira disse que, quando forem identificados, os verdadeiros empregadores serão punidos. Eles terão de arcar com dívidas e multas trabalhistas e administrativas e responder criminalmente.
Ferreira afirmou à reportagem que a situação era “muito grave”, diferente do que auditores se habituaram a ver nesse tipo de fiscalização. Não havia água, banheiros ou mesmo um local para se proteger do sol quente num clima que, a esta época, chega a 40ºC em Uruguaiana.
O procurador do trabalho Hermano Domingues destacou que, nos depoimentos, os trabalhadores disseram que os gatos vendiam drogas aos menores. Os valores eram descontados dos salários.
Sonhava jogar futebol e perdeu dois dedos do pé
Um adolescente de 14 anos, que tinha o sonho de se tornar jogador de futebol, trabalhava sem botina, um equipamento de proteção. O garoto sofreu um acidente de trabalho com um facão e teve dois dedos do pé atingidos.
Uma pessoa que estava só iniciando a vida, o sonho era ser jogador de futebol, já tinha feito testes para clubes de futebol… Perdeu o movimento dos pés, e talvez agora não vai mais jogar bola.” – disse Hermano Domingues, procurador do Trabalho.
O que mais os investigadores encontraram
- Sem local para guardar a comida, as mochilas com marmitas azedavam na roça. Os lavradores dividiam entre si o resto de alimentos que ainda não tinham estragado;
- Formigas atacavam os alimentos dos trabalhadores enquanto eles estavam na roça; Comida fria. Não havia onde aquecer os alimentos;
- Agrotóxicos nas mãos de adolescentes. Eles retiravam uma praga da plantação, chamada de “arroz vermelho”, manuseando agrotóxico;
- Parte do grupo retirava a praga com facas de cozinha, em vez de foices;
- Faltavam equipamentos de proteção, como botas, foices, chapéus, protetores solares;
- As contratações eram feitas sem documentos e registro oficial;
- Adolescentes trabalhavam enquanto fumavam maconha, fornecida pelos “gatos”;
- Não havia primeiros socorros e nem uma pessoa a quem recorrer em caso de acidentes de trabalho ou qualquer eventualidade em uma área rural grande e longe da cidade.
A sede, a fome, a falta de descanso, falta de banheiro e a falta de alguém a quem pedir ajuda gera condição degradante, e é contra isso que lutamos” – afirmou Vítor Ferreira, auditor do trabalho.
Os nomes dos “gatos”, dos donos das fazendas e da empresa que comprou a produção de arroz não foram revelados. Em caso de manifestação deles, o texto será atualizado.
Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.